Segundo Wolfgang Leonhard, antigo dirigente da República Democrática Alemã (RDA), o sistema soviético impunha uma mentalidade medíocre, ao dirigente importava ter uma boa memória, a capacidade de absorver o máximo de resoluções e elaborar diretivas. Um dirigente não podia ser estúpido, mas não podia ser demasiado inteligente, porque as pessoas desse calibre tendem a desafiar as informações, a questionar os relatórios, a detetar as falhas e, portanto, tendem a cair na desobediência. Wolfgang afirmava que quando o sistema estava em crise despontavam os dirigentes brilhantes como Kádár, Dubcek e Gorbachev. Durante os tempos normais governavam os dirigentes medianos, aqueles que incorporavam em toda a sua dimensão o espírito do “Partinost”, nesses tempos o socialismo real era dirigido pelos Ulbrichts e os Honeckers da vida soviética.
É certo que a Federação Russa não é a União Soviética. As ruturas ocorridas são profundas em vários níveis, no entanto, a invasão militar russa na Ucrânia demonstra que no plano das mentalidades políticas existe uma continuidade. A famosa reunião do Conselho de Segurança da Rússia de fevereiro, que foi transmitida em direto na televisão estatal e que o próprio Putin a caracterizou como espontânea e sem qualquer preparação preliminar, é emblemática. Na reunião Sergei Naryshkin (responsável pela inteligência russa e antigo companheiro de Putin no KGB) surge à frente de Putin sem um guião oficial e apresenta um discurso hesitante e confuso. É óbvio que o dirigente russo não estava preocupado com a sua própria análise, mas procurava acertar na resposta que Putin queria ouvir. Um momento caricato e dramático que vai entrar para os futuros livros de história sobre a Federação Russa. Hoje não há dúvidas sobre as ambições imperialistas de Putin e do sonho em reconstituir o antigo império russo. O próprio nunca deixou de esconder a agenda expansionista através de um discurso revisionista e o confronto com a história. Para ele o fim do Império do Czar foi um erro histórico de Lenine e da revolução bolchevique. Entrelinhas afirma que a Ucrânia não devia existir enquanto unidade política e desafia a existência de outras nações (caso da Filândia). De facto, Putin pretende alterar o paradigma da região ao redesenhar as fronteiras da região à luz do nacionalismo russo. Algo que deixou de ser questionável.
Se no início da guerra tudo indicava que a Rússia ia ganhar a guerra, hoje a questão é mais complexa e profunda. A Rússia admitiu que sofreu perdas significativas durante a invasão militar. Há rumores de 7 generais mortos em combate, mas a Rússia apenas confirmou a morte do general Andrei Sukhovetsky. Muitos analistas afirmam que a taxa de mortalidade de oficiais russos é um sinal de “falta de preparação” das Forças Armadas Russas que, nos últimos dias, sofreu um novo revés com o ataque ao cruzador de mísseis Moskva. Um navio construído no estaleiro ucraniano soviético, batizado de Slava (Glória) e, mais tarde, com o fim da URSS, foi rebatizado de Moskva (Moscovo). Na verdade, havia planos para o abate do navio, no entanto, continuava a navegar como símbolo do poder da marinha russa. Ao afundar o navio a Ucrânia não consegue alterar a correlação de forças, no entanto, consegue um impacto tremendo no plano internacional, fere o orgulho do invasor e estes acontecimentos não são circunstanciais no confronto dos nacionalismos e dos orgulhos exacerbados. A Rússia corre o risco de ser temida apenas pelo arsenal nuclear.
Hoje também é evidente que Putin fracassou na concretização de golpes palacianos na Ucrânia, mesmo com pedidos desesperados aos militares ucranianos na televisão. O apoio civil ao exército russo não foi o esperado e os aliados políticos de Putin na Ucrânia não tinham a força/domínio esperado. As batalhas estão a cair para o lado russo, no entanto o preço pago é alto. As fragilidades militares russas e dos serviços de inteligência são patentes no terreno. Ao contrário do que pretendia Putin, a Rússia está cada vez mais enfraquecida pela guerra e os níveis de inquietação devem estar alto em Moscovo. Internacionalmente, o líder russo é encarado como responsável por uma violenta guerra; em termos económicos está condenado aos interesses da China (talvez o único país que cinicamente não queira verdadeiramente a escalada do conflito); existe o risco de instabilidade interna devido à crise/guerra; perante o fracasso de instalar um governo fantoche em Kiev, a solução é controlar militarmente a região de Donbass que vai continuar em guerra e a causar morte nas fileiras russas; permitiu a ascensão de um herói mundial (Zelensky); e, talvez mais importante, é Putin que consegue renascer a importância de uma NATO moribunda e os debates para aumentar a percentagem do PIB de cada estado membro para as Forças Armadas e uma notória militarização pela Europa.
Os novos e tempestuosos ventos oriundos do leste europeu mereciam uma ampla e categórica condenação. O projeto expansionista e belicista de Putin devia ter uma abordagem mais profunda, concreta e crítica por parte da esquerda, nomeadamente, do movimento comunista. É um tremendo erro político abordar a bárbara invasão russa com as narrativas falaciosas que apenas responsabilizam o papel da NATO/EUA/EU, ou realizar leituras que legitimam a propaganda de Putin (caso do “genocídio” nas zonas russófonas ou a “desnazificação” na Ucrânia). Aqueles que lutam pela paz, mas que perante a barbárie e o invasor optam por escolher com cuidado as palavras, são também vítimas de Putin no espaço público.
Internamente, as infelizes circunstâncias fazem com que seja ainda mais urgente inaugurar um debate interno e amplo sobre o fim da URSS, sobre as figuras políticas que emergiram com a sua derrota e a atualidade do paradigma da geopolítico da Guerra Fria.
Na Rússia, o regime vai certamente enfrentar uma crise política e o povo russo devia ter acesso a dirigentes da fibra de Dubcek ou de Gorbachev e não os Lavrovs, os Medvedevs, os Naryshkins e os Peskovs da vida do nacionalismo russo.